A insustentável leveza do ser (Por Salatiel Correia)

Ano de 1968, na antiga Tchecoslováquia, quando os russos invadem o país – no episódio que ficou conhecido como a “Primavera de Praga”.

Tomas, médico; e Tereza, garçonete, conheceram-se devido a uma série de acasos. Chamou a atenção da garçonete aquele homem sentado e com um livro aberto num local repleto de bêbados. O acaso; coisa do destino.

O acaso também ocorreria com a música de Beethoven, que tocava na rádio no momento em que a garçonete atendia ao cliente. A música desse gênio falava fundo na “alma interior” dela. Naquele instante, o passado se fez presente através da memória. O encanto da Tereza menina que trazia dentro de si a imagem do mundo que a fazia flutuar no momento em que o quarteto de Praga lhe apresentava o gênio Beethoven.

Desse modo, “alma interior” se materializa na “alma exterior” – no instante em que a garçonete servia ao médico. E encantou-lhe perceber que ele surfava nas ondas do artista.
“— Você pode incluir isso [o pedido] na minha conta?” – perguntou ele.
“— Claro! Qual é o número de seu quarto?” – respondeu ela.
Nesse momento, ele ergue a chave. Era o número seis.
“— Engraçado. Você está no seis.”
“— O que há de engraçado nisso?” – perguntou ele.
Mais um acaso: este era o número do prédio em que ela morava nos tempos que os pais ainda não tinham se separado.
“— Você está no quarto seis e eu termino meu serviço às seis horas” – aquela insinuação não se materializaria ainda no amor, pois Tomas pegaria o trem às sete.
Nisso, ele lhe entregou um cartão com seu número de telefone: “Se, por acaso, um dia for a Praga…”.

Ela foi a Praga e assim começou o romance dos dois principais personagens de uma obra-prima: “A insustentável Leveza do Ser”, do escritor tcheco Milan Kundera, que nos ensina as sutilezas, os encontros e desencontros do amor inesquecível e construído por uma série de acasos.

“O acaso tem seus sortilégios, a necessidade não. Para que um amor seja inesquecível, é preciso que os acasos se encontrem nele desde o primeiro instante como os pássaros nos ombros de São Francisco de Assis”, revela o autor.

Milan Kundera disseca o peso e a leveza que existe nos encontros e desencontros amorosos. Mergulha no psicológico de Tereza e Tomas no momento em que resolvem construir um mundo a dois. Nesse mundo, a leveza do amor eterno nem sempre é sustentável. Tomas enxergava as mulheres como seu bisturi de médico que dissecava corpos. Traiu inúmeras vezes até que o vazio da vida lhe mostrasse que seu eu se confundia com o eu de Tereza. Tereza traiu sem querer trair. Carregou consigo o peso da culpa.

Os escritos de Milan Kundera se tornaram eternos porque abordam, com maestria, o encontro dos mundos psicológicos que existem em torno do amor, que é construído, no imaginário de cada um de nós, como algo leve. Nesse sentido, o patamar da leveza é, muitas vezes, conquistado depois de ter passado pelo peso que cada um de nós carrega na arte de viver a vida. Quem sabe disso conquista com mais facilidade o estado da leveza a dois.

(Salatiel Correia é Engenheiro, Bacharel em Administração de Empresas, Mestre em Planejamento Energético. É autor, entre outras obras, de Cheiro de Biblioteca.)

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