Delfim e Wenceslau, na Corte Imperial

Delfim morava em Santa Rita, Wenceslau em Itajubá. Os dois dividiam a mesma república, durante o curso de direito, em São Paulo. Essa poderia ser uma história comum, como tantas outras que envolvem uma dupla de estudantes. Isso se eles não se tornassem presidentes da República, algumas décadas depois. Conheça uma aventura real envolvendo loja de penhores, Sarah Bernhardt e o Imperador Dom Pedro II, através de um texto produzido pelo próprio Wenceslau Braz.

“Em 1886, a grande atriz francesa Sarah Bernhardt havia passado por São Paulo onde obteve um sucesso retumbante. Na época, eu estava no primeiro ano de Direito. Quando Sarah voltou ao Rio, muitos estudantes de São Paulo resol-veram assistir. Para isso, foi fretado um trem especial e a-nunciaram aos estudantes pretendentes da capital paulista que a passagem de ida e volta, com direito a um passeio pelo Theatro São Pedro custaria 25! Eu nunca tinha ido ao Rio e desejava muito conhecer a Corte do Rio de Janeiro, como a chamavam. Consultei os meus botões e a minha bolsa. Queria muito ir, mas minha bolsa andava fria, vazia, triste e envergonhada! Dizem que, quando a vontade é firme, remove montanhas. Convidei, então, o meu colega e amigo Delfim Moreira para fazer parte da caravana. Ele me respondeu:

– Vontade não me falta, mas cobre que é bom… niente!
E eu respondi:
– Também estou duro, caro Delfim, mas se uma vontade forte remove montanhas, o que aconteceria se uníssemos as nossas duas?
A verdade é que existiam dificuldades demais para serem vencidas e as que víamos pela frente eram esmagadoras! E Delfim retrucou:
– O que diria a nossa inteligência sobre os meios de arranjar 30 pra mim e 30 para você?
E respondi:
– O meu intelecto está mil furos acima do seu, meu amigo. Por isso, digo que devemos recorrer ao relógio de ouro do Christiano Brasil (Christiano era nosso companheiro na república).
– Como assim recorrer ao relógio do Christiano?
– Veja, Delfim, o quanto sou mais perspicaz do que você! Relógio de ouro do Christiano quer dizer “Casa de Pe-nhores”, meu caro!
– Mas o Christiano não é idiota! Ele não vai querer ficar sem o relógio tantos dias e também ficará com medo de que a Casa de Penhores o leve a leilão!
– Nada de desânimo, Delfim! Pediremos ao Christiano com insistência, como se fosse a coisa mais natural do mundo! Pode acreditar que dará certo!
Quando fomos falar ao Christiano, o amigo começou a rir da nossa pretensão absurda. Insistimos tanto, e com tanta eloquência, que ele acabou cedendo. Logo depois, retiramos o dinheiro na Casa de Penhores, pegamos as passagens e seguimos em direção à estação. A viagem foi cheia de peripécias e teria muito o que narrar, mas devo continuar a história. Quando chegamos à capital do Império, disse a mim mesmo, sem acreditar:

– Estou na corte do Rio!

Como estudava em São Paulo, que tinha na época uma população de 40 mil habitantes, quando cheguei ao Rio, achei aquela cidade colossal! Tinha gente como eu nunca tinha visto! E o Theatro São Pedro Pedro, então? Tudo era novo e imenso! Com essa impressão, cheguei ao Theatro. Enchente completa! Em determinado momento, apontaram para mim o camarote imperial e me disseram que o Rei viria ao espetáculo. Eu já quase não olhava para mais nada que não fosse o camarote! Queria conhecer o Rei e ser o primeiro a vê-lo! Delfim estava ao meu lado, chamava a minha atenção para isso e para aquilo, mas eu nem olhava! Quando eu vi o Rei chegar ao camarote, com suas longas barbas, todo solene, acompanhado de vários outros senhores, aquilo foi uma festa para os meu olhos provincianos! Eu já podia dizer que vi o Rei! O imperador sentou-se. Quando sentaram-se também os outros membros da comitiva, começou o espetáculo. Confesso que tinha a metade do meu olhar para o Rei e metade para a Sarah! Algum tempo depois, o Imperador pegou um binóculo e apontou para a direção dos acadêmicos de São Paulo que estavam quase à sua frente. Quando ele olhou para a minha direção, demorou alguns segundos, até prosseguir. Eu disse, então, ao Delfim, que estava bem ao meu lado:

– Viu?
– Viu o que?
– Quando o Rei olhou para mim, disse para si mesmo: ali está um rapaz que merece subir nos braços da fama e da fortuna!
– Deixe de fumaças – retrucou Delfim. – Foi pra mim que ele falou isso! Quando o imperador me viu, parou para me admirar melhor e ficou espantado ao ver um rapaz com o meu garbo e valor!
– Ora, Delfim, você quer enganar a si mesmo! Você não tem nada de notável, nem pela inteligência que é modestíssima e nem pelo aspecto de típico caipira mineiro! Agora eu, não preciso nem dizer. O mundo já me faz justiça! No fundo você sabe que eu tô dizendo a verdade!
– Ora, Wenceslau, deixe de bobagens! O mundo endossará o que eu disse e pode crer que eu darei a mão para que você também suba às minhas culminâncias!

Depois do espetáculo no Rio, por vezes eu e Delfim rimos do caso, mas com um ar sério e convencido. Cada um puxava sardinha para o seu lado. Aquela brincadeira durou muito tempo. No entanto, nunca nos passou pela cabeça que pudéssemos subir tanto o quanto subimos. Muito menos que virássemos chefes de estado, tendo como colega o próprio Imperador Pedro II! Minha carreira política teve coincidências notáveis com a de Delfim. Meu amigo e pa-rente, foi meu companheiro de casa em São Paulo e de estudos nos últimos três anos do curso jurídico. Nos formamos no dia 4 de dezembro de 1890. Nossas relações sempre foram fraternais. Depois de formados, começamos a vida como promotores. Em 1892, fui eleito deputado estadual e, em 1895, reeleito. Nesse mesmo ano, Delfim foi eleito pela primeira vez. Em 1898, tomei posse como Secretário do Interior. Ao deixar esse posto, em 1902, Delfim me substituiu no cargo. Em 1903, fui eleito deputado federal. Delfim, foi Secretário do Interior por 8 anos, antes de se tornar Deputado Federal. Em 1909, fui eleito Governador e Delfim ocuparia esse cargo em 1914. Em 1910, fui eleito vice-pre-sidente e Delfim ocupou o mesmo cargo nos fins de 1918. Fui Presidente da República de 1914 a 1918. Nesse mesmo ano, passei o cargo a Delfim que exerceu a vice-presidência até os meados de 1919, substituindo o presidente Rodrigues Alves, que não pôde tomar posse. Depois, Delfim passou o governo ao candidato eleito Epitácio Pessoa. Abalado em sua saúde pelo muito que trabalhou pelo seu país, o amigo faleceu pouco depois que deixou a presidência.

Ele sempre foi de extrema lisura moral. Era desambicioso e merecedor da maior estima. Foi um lutador pelas boas causas. Um estadista dedicado aos problemas do Brasil e inimigo da politicagem. Sempre digno, seu nome fulgura, hoje, como modelo de honestidade e de administração através de processos limpos. Saudades, querido Delfim!”

2 COMENTÁRIOS

  1. Ótimas histórias de Delfim Moreira e Wenceslau Bras. Sempre imaginava que dinheiro não havia lhes faltado, parece que não era bem assim.
    Parabéns ao Empório de Notícias!!!

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